terça-feira, 7 de outubro de 2014

Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências não enganam, não

CADERNO DE REDAÇÕES PUC CAMPINAS- PROCESSO SELETIVO 2014


REDAÇÃO 15
Nossos ídolos ainda são os mesmos e as aparências
não enganam, não
Carolina Di Pietro Magri
Certo dia, a caminho do consultório, me envolvi em uma daquelas
situações improváveis de serem esquecidas. Foi só um sinal vermelho, mas um
sinal vermelho memorável.
Sempre gostei de som alto. Não importa a música, eu gosto de sentir
meu corpo vibrando a cada nota e meus pelos se arrepiando a cada solo de
guitarra. E como levo comigo o ditado “musica boa não envelhece”, naquele
dia meus ouvidos vibravam ao som de “Além do horizonte”, de Roberto Carlos,
regravada por uma banda bem mais jovem que o Rei.
Na minha parte favorita, aumentei o som do carro até o último volume,
como se, assim, o mundo todo pudesse sentir também os mesmos arrepios.
Levei uma buzinada. Duas. Três. Ao abrir o vidro do passageiro, pude ver um
senhor grisalho, magro, de olhos bem azuis e testa alta gritando: “Tá surdo, ô
garoto!”, enquanto levava, de maneira brutal, a mão à buzina.
Meio surpreso e um tanto envergonhado, reduzi o volume.
– Poxa, meu Senhor, o Senhor me perdoe, mas, aqui no meu carro, o
meu ouvido escuta o que eu quiser – respondi ao velho que, agora, com as
bochechas vermelhas de ódio, urrava.
– Seu ouvido? Seu ouvido? Eu tô cheio de gente como você me acordar
aos pulos, no meio da madrugada, com essas músicas loucas no último volume!
Esta rua já está parecendo essas festas de vocês, essas baladas! Retrucou o
velho.
Nesse momento, da janela de um sobrado, bem ao lado de onde
nossos carros estavam emparelhados, uma senhora de pijama e de aparência
muito conservada gritou em alto e bom tom:
75
– Arli, deixa de besteira, homem! Tá parecendo doido gritando por aí
com gente que nem conhece! Deixa o rapaz em paz e larga mão dessa
hipocrisia! Na idade dele você também ouvia Roberto Carlos no último volume
do toca-fitas e ai! de quem falasse alguma coisa!
Nesse momento, duas moças que atravessavam a rua exclamaram,
rindo muito:
– É isso aí, minha senhora! Bota o velho no lugar!
Não deu para esconder o riso. Nem um ciclista, ao lado, segurou as
gargalhadas, tendo até que se apoiar no meu carro.
– Esse povo tá maluco, disse a mim mesmo e concordei com a cabeça.
Um guarda civil que passava por ali se aproximou e perguntou ao velho:
– É ocorrência, senhor? É ocorrência de furto aqui no farol? Perguntou
ao velho.
– Antes fosse, seu guarda! É esse rapaz atrevido e a louca da minha
mulher que adora acabar comigo na frente de todo mundo! Ele respondeu.
– Oh, rapaz, tá incomodando esse senhor? Encosta esse carro, ordenou
o guarda, dirigindo-se a mim.
– Era só por causa do som do meu carro, seu guarda. Não fiz nada com
ele. Tô indo trabalhar! Respondi um pouco tenso.
Para meu alívio, o farol ficou verde. Rapidamente, fechei os vidros e
acelerei o carro, querendo me ver livre daquela situação embaraçosa.
Mas este mundo dá voltas e a vida vive nos surpreendendo!
Cheguei ao consultório e minha secretária organizou as fichas dos
pacientes do dia e colocou-as sobre a minha mesa. Pedi a ela que chamasse
o primeiro paciente a ser atendido naquela manhã.
– Só me faltava essa! Você!?... O garoto da música doida, é o Dr. Carlos!?
Com essa idade? E já é ortopedista?
– O melhor da região, felizmente! Seu Arli, né? Veja o senhor como é que
fomos nos conhecer! Respondi alegre, com uma sensação de vingança
daquelas que só sentimos em momentos muito particulares na vida.
– É... é... Olha, Doutor, não me leve a mal não, eu sou esquentado
mesmo. É que música alta me deixa doido de raiva!
– Fique tranquilo, seu Arli; vamos recomeçar do zero. Esqueça isso.
76
A consulta continuou. Muitas outras se seguiram. Seu Arli, hoje, é um de
meus pacientes mais queridos. Lembramos daquele farol vermelho com muitas
gargalhadas. Quando paro para pensar, agradeço por não ser otorrino e
tenho a certeza de que somos os mesmos e vivemos, sim, como os pais, velhos
e avós viviam: ouvindo o Rei ou suas versões moderninhas, em CD ou Fita
Cassete.


REDAÇÃO 15 – ESTUDO CRÍTICO
Cumprindo as solicitações da proposta, a redação principia com um
entrevero na rua entre dois motoristas, um senhor de idade e um rapaz, em
razão da altura excessiva do som saído do carro do rapaz.
Entretanto o candidato optou por uma abordagem meio cômica
quando, sem tirar a razão do senhor de idade de reclamar da intensidade do
som, ao mesmo tempo envereda por um caminho mais suave, porque exime
de culpa o rapaz que produzira o som no último volume, pois este não fora
movido por uma intenção de agredir com o excesso de som tampouco por
ostentação. Ao contrário, ao aumentar o volume do som, sua intenção era
partilhar solidariamente a sensação de intenso prazer, inclusive físico, que a
música lhe proporcionava – “Na minha parte favorita, aumentei o som do
carro até o último volume, como se, assim, o mundo todo pudesse sentir também
os mesmos arrepios”.
Inversamente, porém, ao que pretendia, o que recebeu
em troca do carro vizinho foram três buzinadas e uma pergunta agressiva: “Tá
surdo, ô garoto?”.
O jovem motorista, ainda surpreso com a grosseria do vizinho, mas
também envergonhado de sua atitude, de um lado, reduz o volume do som e
de outro, ironicamente educado, agride-o, dizendo nas entrelinhas que não
se meta e que não lhe deve explicações: “Poxa, meu Senhor, o Senhor me
perdoe, mas, aqui no meu carro, o meu ouvido escuta o que eu quiser.”
Na sequência, urrando de ódio, bochechas vermelhas, o velho perde
completamente o controle, extravasando seu ódio e generalizando a agressão
para além dos limites da questão de rua. A partir desse ponto, a narrativa
adquire um tom jocoso com a intervenção da própria mulher que desmascara
sua hipocrisia, acusando-o de ter sido tão ou mais fanático e exagerado que
o outro e com a intervenção das moças, que provocam o riso em todos os
presentes. O impasse se resolve, finalmente, com a partida do motorista jovem
rumo a seu trabalho. Até esse ponto, a narrativa cumpriu a proposta.
Mas – aqui entra a criatividade do autor – a história continua: os dois
motoristas reaparecem em outra situação, envolvidos agora numa relação de
médico e paciente em que os papéis se invertem comicamente. E o jovem
agredido pelo velho briguento é alçado a um patamar superior em que
desfruta, por momentos, de uma sensação de vingança pela agressão sofrida.
O senhor idoso, inversamente, depois do impasse inicial do segundo encontro
– “Só me faltava essa! Você!?... O garoto da música doida, é o Dr. Carlos!”
Constrangido se humilha, justificando-se – “É... é... Olha, Doutor, não me leve a
mal não, eu sou esquentado mesmo. É que música alta me deixa doido de
raiva!”.
Finalmente, o episódio de rua, destituído de importância, passa a ser
apenas uma lembrança engraçada que ambos curtem ao longo da
convivência médico/paciente.
A partir do exposto, podemos dizer que o autor ultrapassou o nível de
mero relato de acontecimentos e conseguiu construir uma narrativa que
questiona a abordagem das relações humanas enquanto modelos previsíveis
de relacionamentos, definidos a partir de contextos ocasionais muitas vezes
enganosos. Ambos não eram o que aparentavam. Quanto à linguagem, é de
notar o emprego do discurso direto como recurso expressivo. Resta, ainda,
apontar o aproveitamento oportuno dos demais personagens relacionados
na proposta, inserindo-os expressivamente no contexto, como no caso das
duas garotas e da mulher no sobrado.


Nenhum comentário: